Fragmentos – Direcionamentos

Sei que existe uma proposta de lei encaminhada já há algum tempo que comprova a viabilidade do projeto de extinção da polícia militar. Sinceramente, acho desejável, necessário até, mas não penso que este seja o único modo possível de encaminhar a questão. Me parece mais interessante investir em um projeto de ‘desescolarização’ mais amplo da sociedade como um todo. De que forma? Contaminando as cidades “com ideias de arte” a partir de espaços como OCUPAÇÕES (mais ou menos como faz Chapolim, a certa altura deste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=_ahMaiRodNw). Insistir em noções como horizontalidade, auto-gestão e descentralização a partir destes espaços é de certa forma encorajar um levante; alguma dúvida de que é preciso?

Se é verdade que o regime estético, como propõe Jacques Rancière, “identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes”,  temos de fato, como propõe o pensador, uma ‘Revolução’ a considerar. Pois se então pensamos mais na possibilidade de manifestação de diferenças do que no estabelecimento de hierarquias, temos aí uma ideia da medida em que toda nossa estética precisa ser reinventada.

Embora a ideia de que talvez nunca tenhamos sido modernos esteja mais em voga (considerando aqui a força do pensamento de Bruno Latour na metafísica canibal de Viveiros de Castro), acredito ser útil lembrar o que vinha propondo Andreas Huyssen, em meados dos anos 80, quando a pós-modernidade não era ainda um conceito tão universalmente desprezado.  Ele dizia que “[a]s fronteiras entre arte erudita (high art) e cultura de massa tornaram-se cada vez mais difusas, e nós deveríamos começar a ver esse processo como uma oportunidade ao invés de lamentar perda de qualidade e falta de ousadia”. (…)

“Por já algum tempo, artistas e escritores tem vivido e trabalhado depois da Grande Divisão. É tempo de os críticos entenderem”.

Ora, em nosso caso, questionar hierarquias em termos culturais faz ver de imediato a força de coisas como o xamanismo, por exemplo. As consequências são irrecusáveis. É a razão pela qual eu mesmo venho me apropriando do termo ‘tecnoxamanismo’, reconhecendo por aí um caminho possível para um amplo processo de (re-des)organização política (considere a potência de uma aproximação possível entre as pesquisas de Beatriz Labate, Fabiane Borges, e Laymert Garcia, por exemplo, o que é preciso para esta aproximação ocorrer? Resposta: apoio ao desenvolvimento de pesquisas autônomas coletivas; condições econômicas menos miseráveis).

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A proposta em curso está relacionada ao desenvolvimento de espaços desenvolvidos com atenção a princípios libertários, preferencialmente em zonas periféricas – espaços autogeridos por pessoas que atuam à margem da cultura oficial, como são por exemplo os agentes da luta por moradia, em ocupações, e os próprios povos indígenas. Um exemplo é a Casa da Formiga Preta, localizada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Assumir mais propriamente um vínculo possível com a instituição arte tem nesse sentido o intuito de contribuir com processos de empoderamento, propiciando condições materiais que permitam que tipos geralmente oprimidxs tenham suas vozes mais propriamente ouvidas. Trata-se, para pôr de outro modo, de tornar mais evidente pela arte o fato de que não é preciso se conformar: o desejável é transformar; criar.

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Dentre todos os posts inacreditáveis que às vezes vejo algumas pessoas postando em redes sociais, recentemente um me deixou particularmente perplexo. Para resumir, mulheres assumidamente conservadoras diziam em tom de clara nostalgia sentir falta do “homem tradicional”. Me pergunto a que exatamente se referiam. Que querem dizer as mulheres (e também alguns homens) quando desejam o ‘homem tradicional’? Se considerarmos o que vem se pensando no campo da estética, o que quer q haja de apreciável numa direção qualquer, é espírito; é infinito; isto é, qualquer coisa que está além do que pretende designar uma identificação de gênero. Quer dizer, a capacidade de apreciação do outro não se esgota àquilo que uma atribuição pretende compreender, e por mais satisfeita que alguém possa estar com convenções sociais pré-estabelecidas, é preciso reconhecer que o conceito tradicional de “homem” por tudo o que encerra é problemático. Em nosso contexto histórico, ele revela uma ocultação terrível. Particularmente por tudo de abominável e repressor que uma cultura patriarcal representa.  É possivelmente a isso que se refere o anarcofunk em “racha-macho”, ou ainda Pagu Funk com o refrão “vou cortar a sua pica”.

Não levemos a ameaça tão a sério. O ponto é que ela não é sem sentido. A “pica” não é assumida nesse caso como uma diferença a ser suprimida no outro simplesmente, o que configuraria provavelmente um discurso de natureza fascista, mas sim como algo que se usa frequentemente para oprimir, de modo então que a ameaça é mais propriamente um gesto de auto-defesa.

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Minha posição em relação à ideia de vanguarda talvez possa ser considerada contraditória. Por um lado, entendo que não há qualquer sentido em procurar afirmar uma vanguarda quando o que se valoriza é descentralização,  singularidade e diferença – a imagem de um grupo à frente de uma maioria, abrindo caminho, me parece no mínimo suspeita. Por outro lado, percebo que há diversas formas de ocupar este lugar, pois a expectativa comum, pela ideia que a maior parte das pessoas possui da arte, a estabelece, de qualquer modo, junto à classe de artistas mais ou menos reconhecida como tal, quase como um mito. É preciso reconhecer, pois as pessoas que estão inclinadas à discussão deste tipo de coisas constituem de qualquer forma uma elite. Se vamos assim então ocupar este lugar, ainda que pelo mero fato de que estamos estudando arte e falando de arte, é importante que nos apropriemos do termo com alguma inteligência. Se seremos então a vanguarda, de que tipo seremos? Eu estou aqui, lendo sobre xamanismo e ouvindo anarcofunk;  estou a meu modo ouvindo vozes que não costumam ser escutadas, e acreditando que nessa direção realmente muita coisa poder ser feita. Nesse direção, algumas pessoas tem produzido coisas que merecem ser notadas, e é importante que sejam, pelo que podemos considerar desejável no andamento da história.

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Eu acho que tudo quanto é ‘burguês’ tinha que ir pra favela, e não só pra comprar maconha ou outra substância ilícita (a primeira razão pela qual a nossa política a este respeito precisa ser outra); tinha que ter coragem de levar o corpo (que afinal foi de um modo ou de outro dependente de uma estrutura social racista e segregadora para se desenvolver) até este espaço; teria que ter menos razão para medo nesta circunstância; para isso teria que ter mais disposição para dividir seu conhecimento, e (pq não?) suas propriedades. É sobretudo o medo que está na base do conservadorismo que a bancada do Boi, da bala e da Bíblia representam: não tanto o medo dx outrx, quanto o medo da perda dos bens que são obtidos em prejuízo do outro. Bens que mesmo se obtidos de forma absolutamente questionáveis do ponto de vista da ética, acreditam ser preciso resguardar. Em campo mais propriamente democrático, veríamos que a economia de forças relacionada ao exercício da política demanda o estabelecimento de trocas mais justas. Isto é algo que nosso modelo de democracia representativa não permite admitir. Por isso é importante reconhecer mais propriamente o anarquismo e sua significação espiritual, pois aí temos mais consciência dos afetos em nossas relações. Somente assim podemos considerá-lo propriamente: o anarquismo, bem compreendido, é desejável, pois noções como a de apoio -mútuo e simbiose dispensam o medo, basicamente. E não ter medo, de acordo com Nina Simone, é a própria liberdade!

Percebe-se como, no âmbito de nossas relações sociais, o princípio da violência está na desproporção das forças, isto é, na desigualdade e no autoritarismo naturalizado pela ordem imposta, já na composição do espaço, especialmente por interesses econômicos e políticos.

O anarquismo ou o socialismo libertário é importante, nesse sentido, não apenas pela contundência da recusa em relação a este estado de coisas, mas principalmente pelas alternativas que nessa direção se desenham.

Em meus estudos de filosofia, um dos livros mais belos que eu já tive a oportunidade de ler foi um livro quase religioso chamado ‘o Gênio Romântico’, de autoria de Márcio Suzuki. É um livro difícil, mas uma construção belíssima. Através dele eu quis propor o lugar da filosofia na história da arte, como obra de arte. Meu trabalho não foi bem propriamente compreendido na academia; eu mesmo, muito mais concentrado na fundamentação de um processo, não me preocupei em apresentar qualquer coisa de acabado, e na época não o compreendi muito bem. Foi algo como um bloco mais ou menos caótico de sentido. Hoje reconheço com mais clareza que aquela pesquisa, apresentada na época como processo – “work in progress”-, me levou de encontro com o pensamento anarquista, com o qual até então flertava com maiores reservas, e com o que poderíamos considerar suas implicações “metafísicas”.

A razão pela qual o conservadorismo, e com ela a direita, me parece desprezível (não encontro agora melhor palavra, me desculpem) é o fato de desejar manter um estado de coisas por medo de perdê-las. As pessoas se apegam a suas propriedades, por exemplo, pq há muita coisa boa certamente vinculada a elas. Isso é compreensível. A questão está em reconhecer justamente que o valor que as coisas podem possuir para nós é, sobretudo, de ordem afetiva; não propriamente material. É assim muito mais na relação afetiva do que na posse sobre as coisas que devemos nos concentrar.

A história da arte e a estética atuam muito detidamente sobre este ponto, particularmente quando ela nos orienta em direção à noções como as de desmaterialização, efemeridade e performance. Por isso é interessante reconhecer mais propriamente a potência transformadora da arte.

Mesmo Burke, pilar do pensamento conservador, não era cego à arte – o que é possivelmente uma razão para nos alegrar.

O mais difícil, talvez, de admitir o anarquismo como um nome que mereça ser mais propriamente considerado, é o que nos é proposto acerca de coisas como propriedade e família nesta direção. É preciso, por isso, compreender muito melhor e com muito mais tempo, essas coisas. É preciso estabelecer os meios favoráveis para conceber mais propriamente estas ideias, que afinal, se referem a práticas possíveis.

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Se a gente se sente agredido é que nos colocamos na posição do outro em relação ao lugar onde se produz o enunciado. É preciso ouvir o que está sendo dito; por mais difícil que às vezes possa ser, é preciso considerar o discurso “nosso”. É preciso temer menos falar dessas coisas. É preciso poder ser mais livre!

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O intelectual público, o artista, é sempre um pouco como o maestro. Alguém que por uma espécie de sensibilidade muito apurada como que antecipa o movimento do Espírito e orienta a experiência do tempo.

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É difícil saber o que pronunciar em certos casos. Alguém vai dizer que é melhor não falar nada, mas é melhor não falar nada? É inacreditável. Ontem passei um tempo lendo comentários nas páginas de militares no facebook; pessoas, em sua maioria religiosas, endossando o coro do “bandido bom é bandido morto”; parabenizando em nome de Deus (!) a ação destes “guerreiros” que defendem “cidadãos de bem”, como se fossem anjos. “Pessoas de bem” são os burgueses conformados? os trabalhadores domesticados? Quem são os cidadãos “do mal”? todos estes decerto que veladamente, segundo a hipocrisia comum, “merecem” a violência…não podemos nos calar; são estas pessoas também que precisam se desescolarizar.

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Mais ou menos como sugeria Herman Hesse, em Demian, precisamos de Abraxas; de um Deus que seja ao mesmo tempo deus e demônio; de um Deus que seja, sobretudo, nós mesmxs. Precisamos recompor nossos ritos em relação a esse Deus.

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“Reinventar a Polícia é possível”: Transcrição de entrevista com Luiz Eduardo Soares, ao Ilustríssima Conversa (Podcast)

Transcrição_Podcast_Luiz_Eduardo_Soares_Reinventar_a_polícia_é_possível

Transcrição de entrevista realizada pela Ilustríssima Conversa (podcast da Folha de São Paulo), com Luiz Eduardo Soares, antropólogo, especialista em segurança pública, um dos autores de Elite da Tropa (livro que deu origem ao filme Tropa de Elite), e autor do livro Desmilitarizar, lançado recentemente pela Boitempo.
 
Luiz Eduardo Soares fala sobre a necessidade de “refundação” das instituições policiais, de como a transição democrática nunca chegou à área de segurança pública, de encarceramento em massa, de racismo estrutural, do “casamento perverso entre o modelo policial e a lei de drogas”, sobre a estrutura organizacional da polícia militar em relação ao exército, sobre um possível modelo alternativo de segurança pública, sobre sua experiência como ex-secretário na área, sobre por que o plano de segurança pública (SUSP) proposto na época não foi pra frente, e finalmente, sobre o “pacote anticrime” proposto por Sérgio Moro.
 
Ficou um tanto longo, mas acompanhando o audio ao mesmo tempo (link nos comentários), acho que fica suave…:
 
Algumas palavras que eu não entendi direito no audio estão em vermelho. Se vc entender, me diz.
😉

Da arte e do trabalho

“Tento efetivamente privilegiar modos de escrever a história, modos de apresentar as situações, de agenciar os enunciados, modos de constituir as relações entre causa e efeito, ou entre antecedente e consequente, que perturbem as referências tradicionais, os modos de apresentação dos objetos, de indução das significações, e dos esquemas causais que constroem a inteligibilidade standard da história. Um discurso teórico é sempre uma forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre os quais ele argumenta. Reivindicar o caráter poético de qualquer enunciado teórico também é contestar as fronteiras e as hierarquias entre os níveis de discurso. O que nos remete para o nosso ponto de partida.”

Jacques Rancière

Útimo capítulo do livro “A Partilha do Sensível”, de autoria de Jacques Rancière:
A partilha do Sensível_capítulo_5 (link)

Enric Duran – Podemos vivir sin capitalismo

https://www.youtube.com/watch?v=hbN_fucnX2k

Flor do Asfalto (Rio de Janeiro) 2006-2011

Desescolarizar o mundo: Kuna Libertária (Porto Alegre): “o dinheiro não existe”

Terceiro da série ‘Desescolarizar o mundo’.

Kuna Libertária_O dinheiro não existe

Vídeo da Kuna: “A vida como um fazer natural”:

Desescolarizar* o mundo: Ocupa UNIRIO: Casa da Bruxa, Bandejão, primeira Bienal Autônoma de Artes e o nascimento do projeto Bruxa/ Brota

Desescolarizar a Universidade o mundo, é uma série que reúne registros e reflexões relativas à experiência em ocupações e espaços autônomos.

Desescolarizar o mundo_Ocupa UNIRIO_pdf.

Desescolarizar o mundo – Sobre ocupações como espaços de liberdade; o caso El Quinto (Prédio do DCE – UFPR)

Primeiro de uma série; registro de experiência e considerações estético-políticas sobre a experiência em ocupações e espaços autônomos.

Sobre ocupações como espaços de liberdade_o caso El Quinto_pdf

Pântano Revida – Aracruz (ES) – 2009 – 2013

Fazendo escola (ou refazendo-a?) – Thierry de Duve [última parte do capítulo 3]

De acordo com Thierry de Duve, já não é possível ensinar arte, mas apenas ‘transmitir a tradição’. Thierry, professor, crítico e curador, sustenta que, para isso, são fundamentais a História da Arte e a Estética, disciplinas que para ele não são teóricas (fundamentadas que estão, sobretudo, na experiência). O livro traz um levantamento geral de algumas das principais escolas de arte surgidas na Europa, particularmente a partir da década de 60, quando a atmosfera política de então parece ter deixado aberto caminhos para o desenvolvimento de projetos utópicos e experimentais; projetos que somente agora, a meu ver, começam a ser propriamente assimilados. Thierry considera com algum destaque o legado da Bauhaus, e alguns aspectos da influência do pensamento romântico e do idealismo alemão sobre o ensino da arte. Revelando uma “paixão insensata” sobre a discussão que levanta, ele lembra a todo momento, entre Marcel Duchamp e Joseph Beuys, a ideia de que todxs somos artistas. Para mim reside aí, nessa direção, o maior interesse de seu pensamento. Eu escaneei a parte final do capítulo 3 do livro, que foi um dos que mais me chamou a atenção, talvez por considerar de modo particular “a indeterminação dos canais de transmissão de arte”, e por evocar escolas abertas que funcionariam como residências e centros difusores, como a de Vila Arson. Ou ainda pela “escola de arte do futuro” esboçada de forma que penso coincidir em grande medida com o que venho procurando propor aqui, com o projeto Brota e com o Espaço Incerto.

Fazendo_escolauma ética: colocar a transmissão estética em seu devido lugar no mundo da arte. pdf

O Caso Mercur

O Caso da Mercur: Mudança Inspirada em Paulo Freire (pdf)