Sobre arte, história e vida

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O projeto Brota é um experimento em arte que compreende a performance num sentido muito próximo ao utilizado na filosofia e na antropologia (em Michel Foucault e Hannah Arendt, por exemplo). Isto é, no sentido em que toda manifestação de vida apresenta qualidades formais – estéticas- e discursivas que admitem a consideração de certa performatividade. Para o projeto Brota, as questões de arte de modo geral, não se limitam a produções episódicas ou espetaculares, nem muito menos a produção de sujeitos específicos. Nos casos de produções que se apresentam sobre palcos ou encerradas em espaços mais ou menos institucionalizados, o Brota está especialmente concentrado na experiência depois dos aplausos (ou da ausência deles); na potência de significação da experiência nas continuidades e descontinuidades da vida mesma; na capacidade de criação de artistas, compreendidos como sujeitos perfeitamente (extra)ordinários.

Para que se entenda bem o ponto de onde partimos, o projeto Brota não é contrário às formas de arte tradicionais. Ele apenas reconhece a dimensão mais significativa da pintura, por exemplo, no processo de produção da obra, e não em sua qualidade de objeto per se. Evidentemente, uma obra não poderia ser dada à nossa percepção sem aquilo que é condição de sua existência, ou ainda, a “aparição” de uma determinada forma no mundo de nossa experiência sensível não pode ocorrer sem o processo específico de produção de que depende a existência dessa forma: esta relação é o que nos permite considerar a obra um registro do processo de criação: é enquanto registro, afinal, que ela pode possuir maior ou menor valor histórico e afetivo[1]. Pois então, o elemento decisivo para esta valoração é a intensidade da experiência envolvida em sua realização – tanto pelos movimentos do corpo dx artista, no caso da pintura, quanto pela percepção reflexiva da pessoa que é retirada da condição passiva de público pelo próprio poder de suspensão que caracteriza a arte[2]. Esta intensidade, claro, absolutamente relativa, depende do que na vida pensamos já haver visto, ou do que então passamos a ver.

[1] Um dos exemplos mais emblemáticos para estas considerações é a chamada “action painting” de Jackson Pollock: as manchas de tinta remetem ao processo de produção da pintura. Antes dele, podemos considerar a orientação metafísica que retira xs pintorxs impressionistas de seus ateliês e xs leva à campo, ou, em um quadro como Olympia, de Manet, a aproximação escancarada, e ousada, para a época, entre o artista e a prostituta, ou ainda os gestos de Van Gogh sugeridos por suas pinceladas, as viagens de Gaughin e assim por diante. Estes e muitos outros exemplos são considerados no pequeno livro de Nicolas Bourriaud: Formas de vida.

[2] “o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador”. O ato criador. Marcel Duchamp, 1965. Em outra parte o artista chega a considerar que “os espectadores é que criam os quadros”. Citado em Formas de vida. Nicolas Bourriaud, p. 185.

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Uma intensidade é sempre uma irrupção no tecido mais ou menos homogêneo da vida do espírito. Podemos dizer que ela revela um direcionamento possível aos indivíduos de uma determinada época, sendo assim, de um modo ou de outro, necessária para o movimento da história. Daí que o tatear sensível que conduz o espírito ao ato criativo – a intensidade por excelência – não apenas no campo mais tradicional da arte, mas também na ciência e na filosofia cotidiana, nos pareça fundamental. É ele que poderá evidenciar que não apenas a subordinação a normas bem estabelecidas merece a nossa atenção, mas especialmente as burlas, os atentados, os crimes, ou seja, as intensidades que são tomadas como problemas no decorrer do tempo. Pois se estas coisas ocorrem, elas são indicativas de um possível que exige formas de fazer-se atual, isto é, indicativas de certa exigência do espírito; jamais meras provas de corrompimento como tendem muitas vezes a ser tomadas. Para que a intensidade que é própria à forma como se constituem estas experiências deixe de constituir problemas, a elaboração, justamente, da forma revela-se urgente, e não sua condenação ou repressão.

Sabemos que a história da arte pode ser considerada uma construção discursiva estabelecida a partir de diferenças que despontam no tempo no sentido de uma “tendência auto-crítica” levada ao extremo[1]. Tendência que, de Clement Greenberg e Joseph Kosuth, por exemplo, nos leva a considerar versões cada vez mais singulares – descolonizantes – desta história. Pois se é verdade que a história da arte reúne e articula produções que revelam fazeres e maneiras de viver que escapam do que seria possível, ou “normal”, nas diferentes épocas – na cultura, sempre a exceção, como um dia disse Godard –  então podemos adotá-la como uma espécie de instrumento de libertação. Daí o destaque que o projeto Brota confere à significação espiritual que um incontável número de artistas e pensadores atribuem à arte ao longo da história, e daí também o sentido maior da recuperação pretendida do projeto histórico de “educação estética da humanidade”: esta libertação não ocorre de cima para baixo, como em muitos casos se pensa, mas sobretudo a partir de uma ênfase sobre a potência afetiva do corpo no espaço.

É, assim, a partir da chave da libertação que o projeto Brota propõe que se considere mais amplamente o interesse em relacionar o que se considerou o fim da história da arte à discussões relacionadas, por exemplo, à descolonização e tecnoxamanismo. O mais importante, em todo caso, permanece sendo o elemento da criação.

[1] Aqui desejamos insinuar uma relação de continuidade entre os princípios que fundamentam o pensamento do mais conhecido crítico do período moderno, Clement Greenberg, que destaca em ensaios como “Pintura modernista” a tendência autocrítica que teria tido o filósofo Immanuel Kant como precursor, ao pensamento de artistas como Joseph Kosuth, que, a despeito da ruptura pretendida com a tradição formalista, reforça a tendência referida pelo crítico: “Se um artista aceita a pintura (ou escultura), ele está aceitando a tradição que vai com ela. Isso porque a palavra arte é geral e a palavra pintura é específica. A pintura é um tipo de arte. Se você faz pinturas você já está aceitando (não questionando) a natureza da arte. Está então aceitando ser a natureza da arte a tradição européia de uma dicotomia pintura-escultura”. Clement Greenberg, “Pintura Modernista”, em Clement Greenberg e o Debate Crítico. FERREIRA G.; COTRIM, C. (Org.). Joseph Kosuth, em Art after Philosophy.

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“Reinventar a Polícia é possível”: Transcrição de entrevista com Luiz Eduardo Soares, ao Ilustríssima Conversa (Podcast)

Transcrição_Podcast_Luiz_Eduardo_Soares_Reinventar_a_polícia_é_possível

Transcrição de entrevista realizada pela Ilustríssima Conversa (podcast da Folha de São Paulo), com Luiz Eduardo Soares, antropólogo, especialista em segurança pública, um dos autores de Elite da Tropa (livro que deu origem ao filme Tropa de Elite), e autor do livro Desmilitarizar, lançado recentemente pela Boitempo.
 
Luiz Eduardo Soares fala sobre a necessidade de “refundação” das instituições policiais, de como a transição democrática nunca chegou à área de segurança pública, de encarceramento em massa, de racismo estrutural, do “casamento perverso entre o modelo policial e a lei de drogas”, sobre a estrutura organizacional da polícia militar em relação ao exército, sobre um possível modelo alternativo de segurança pública, sobre sua experiência como ex-secretário na área, sobre por que o plano de segurança pública (SUSP) proposto na época não foi pra frente, e finalmente, sobre o “pacote anticrime” proposto por Sérgio Moro.
 
Ficou um tanto longo, mas acompanhando o audio ao mesmo tempo (link nos comentários), acho que fica suave…:
 
Algumas palavras que eu não entendi direito no audio estão em vermelho. Se vc entender, me diz.
😉

Da arte e do trabalho

“Tento efetivamente privilegiar modos de escrever a história, modos de apresentar as situações, de agenciar os enunciados, modos de constituir as relações entre causa e efeito, ou entre antecedente e consequente, que perturbem as referências tradicionais, os modos de apresentação dos objetos, de indução das significações, e dos esquemas causais que constroem a inteligibilidade standard da história. Um discurso teórico é sempre uma forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre os quais ele argumenta. Reivindicar o caráter poético de qualquer enunciado teórico também é contestar as fronteiras e as hierarquias entre os níveis de discurso. O que nos remete para o nosso ponto de partida.”

Jacques Rancière

Útimo capítulo do livro “A Partilha do Sensível”, de autoria de Jacques Rancière:
A partilha do Sensível_capítulo_5 (link)

Enric Duran – Podemos vivir sin capitalismo

https://www.youtube.com/watch?v=hbN_fucnX2k

Flor do Asfalto (Rio de Janeiro) 2006-2011

Desescolarizar o mundo: Kuna Libertária (Porto Alegre): “o dinheiro não existe”

Terceiro da série ‘Desescolarizar o mundo’.

Kuna Libertária_O dinheiro não existe

Vídeo da Kuna: “A vida como um fazer natural”:

Desescolarizar* o mundo: Ocupa UNIRIO: Casa da Bruxa, Bandejão, primeira Bienal Autônoma de Artes e o nascimento do projeto Bruxa/ Brota

Desescolarizar a Universidade o mundo, é uma série que reúne registros e reflexões relativas à experiência em ocupações e espaços autônomos.

Desescolarizar o mundo_Ocupa UNIRIO_pdf.

Desescolarizar o mundo – Sobre ocupações como espaços de liberdade; o caso El Quinto (Prédio do DCE – UFPR)

Primeiro de uma série; registro de experiência e considerações estético-políticas sobre a experiência em ocupações e espaços autônomos.

Sobre ocupações como espaços de liberdade_o caso El Quinto_pdf

Pântano Revida – Aracruz (ES) – 2009 – 2013

Fazendo escola (ou refazendo-a?) – Thierry de Duve [última parte do capítulo 3]

De acordo com Thierry de Duve, já não é possível ensinar arte, mas apenas ‘transmitir a tradição’. Thierry, professor, crítico e curador, sustenta que, para isso, são fundamentais a História da Arte e a Estética, disciplinas que para ele não são teóricas (fundamentadas que estão, sobretudo, na experiência). O livro traz um levantamento geral de algumas das principais escolas de arte surgidas na Europa, particularmente a partir da década de 60, quando a atmosfera política de então parece ter deixado aberto caminhos para o desenvolvimento de projetos utópicos e experimentais; projetos que somente agora, a meu ver, começam a ser propriamente assimilados. Thierry considera com algum destaque o legado da Bauhaus, e alguns aspectos da influência do pensamento romântico e do idealismo alemão sobre o ensino da arte. Revelando uma “paixão insensata” sobre a discussão que levanta, ele lembra a todo momento, entre Marcel Duchamp e Joseph Beuys, a ideia de que todxs somos artistas. Para mim reside aí, nessa direção, o maior interesse de seu pensamento. Eu escaneei a parte final do capítulo 3 do livro, que foi um dos que mais me chamou a atenção, talvez por considerar de modo particular “a indeterminação dos canais de transmissão de arte”, e por evocar escolas abertas que funcionariam como residências e centros difusores, como a de Vila Arson. Ou ainda pela “escola de arte do futuro” esboçada de forma que penso coincidir em grande medida com o que venho procurando propor aqui, com o projeto Brota e com o Espaço Incerto.

Fazendo_escolauma ética: colocar a transmissão estética em seu devido lugar no mundo da arte. pdf

O Caso Mercur

O Caso da Mercur: Mudança Inspirada em Paulo Freire (pdf)