Por uma descolonização antropofágica[1]

“Necessitamos de pesquisas sobre a possibilidade de usar a tecnologia para criar instituições que sirvam à interação pessoal, criativa e autônoma e que façam emergir valores não passíveis de controle substancial pelos tecnocratas. Necessitamos de pesquisas que se oponham à futurologia em voga”
Ivan Illich, 1970.

O projeto Brota é fruto de reflexões sobre estética e política. Ele nasce a partir da retomada dos fundamentos do regime das artes de nossa época – o “regime estético”, como define Jacques Rancière -, propondo compreender a concepção moderna de arte, relacionada a um tipo muito distinto de experiência – experiência estética: “experiência de suspensão de opostos” (Schiller) – em campo ampliado*. Para pôr de outra forma, o projeto Brota retoma o tema da vida como obra de arte (Nietzsche), e nos leva a compreender, com Mário Pedrosa, a arte como um “exercício experimental da liberdade”, assim como as implicações políticas de considerar, como propõe Thierry de Duve e tantos outros, que somos todos artistas.[2]

O projeto Brota propõe a atualização do projeto de “educação estética da humanidade”, originalmente proposto na Alemanha do século 18, aproximando-o do que vem sendo pensado mais recentemente como desescolarização[3]: trata-se ainda, afinal, de trabalhar sobre as condições de um meio que permita o pleno desenvolvimento de nossa potência de vida, ou como diziam os românticos, o desenvolvimento do “gênio” singular à todas as pessoas[4].

É importante ter em conta, porém, que a recuperação da dimensão espiritual da arte e a irrecusável ênfase no caráter metafísico ou transcendental da experiência que a caracteriza desde a modernidade, não pretende mera mistificação do debate estético. Pois com ênfase na dimensão relacional da existência e na potência afetiva dos corpos, o projeto Brota se apresenta, sobretudo, como um aparato simbólico e conceitual contra os princípios que sustentam as mais diversas formas de autoritarismo, verticalidade e violência em nossa cultura. O Brota é, nesse sentido, uma iniciativa que explora a brecha que a arte, por sua própria história, representa em nosso meio para encorajar aproximações entre ética e estética, solicitando a mobilização, o engajamento e a capacidade de organização de estudantes e trabalhadorx das mais diversas áreas do conhecimento para atuar desde o plano micro-político (infraestrutura, como propõe Pierre Clastres) contra a “ditadura do capital” [5] (super estrutura, como propõe o mesmo pensador) e contra todas as formas de opressão.

[1] O projeto Brota é inspirado pela tradição do pensamento libertário; pela defesa romântica de uma associação política radical entre arte e educação; pelo tema da vida como obra de arte; pela concepção de trabalho do jovem Marx; pelo pensamento crítico-genealógico de Foucault; pelo “empirismo transcendental” de Spinoza e Deleuze; pela tradição crítica da história da arte – mais particularmente, por noções como as de ready-made, escultura social, antropofagia, deriva, psicogeografia, arte postal, site-specific, happening, apropriação, processo e performance; pela resistência indígena, quilombola e cigana; por manifestações contraculturais, como o movimento beat, hippie e anarcopunk; pela arte de rua; pela ciência, particularmente pela física, para muito além do “misticismo quântico”; e finalmente, pelo uso de cogumelos e plantas de poder.

[2] Thierry de Duve desenvolve este ponto em Kant after Duchamp, quando a certa altura chega a escrever que “pensar é fazer”. Ao insistir em um entendimento da arte em campo ampliado, o Brota aproxima este ponto da reflexão sobre a percepção de Maurice Merleu-Ponty – importante influência à artistas neoconcretos, como Lygia Clark e Helio Oiticica -, bem como à dimensão de criação inerente à existência que interessa à Felix Guattari.

[3] Sobre desescolarização, ver Ivan Illich, autor de Sociedade sem Escolas. No Brasil, Ana Thomaz é umas das maiores referências sobre o assunto. Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=QveTf5DekIo

[4] Este era um ponto defendido, por exemplo, por Herder. Ver O Gênio Romântico, de Márcio Suzuki.

[5] Expressão extraída do documentário “Atrás da Porta”, sobre ocupações no Rio de Janeiro. O documentário, realizado por Vladimir Seixas e Chapolim pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=_ahMaiRodNw

Sobre arte, história e vida

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O projeto Brota é um experimento em arte que compreende a performance num sentido muito próximo ao utilizado na filosofia e na antropologia (em Michel Foucault e Hannah Arendt, por exemplo). Isto é, no sentido em que toda manifestação de vida apresenta qualidades formais – estéticas- e discursivas que admitem a consideração de certa performatividade. Para o projeto Brota, as questões de arte de modo geral, não se limitam a produções episódicas ou espetaculares, nem muito menos a produção de sujeitos específicos. Nos casos de produções que se apresentam sobre palcos ou encerradas em espaços mais ou menos institucionalizados, o Brota está especialmente concentrado na experiência depois dos aplausos (ou da ausência deles); na potência de significação da experiência nas continuidades e descontinuidades da vida mesma; na capacidade de criação de artistas, compreendidos como sujeitos perfeitamente (extra)ordinários.

Para que se entenda bem o ponto de onde partimos, o projeto Brota não é contrário às formas de arte tradicionais. Ele apenas reconhece a dimensão mais significativa da pintura, por exemplo, no processo de produção da obra, e não em sua qualidade de objeto per se. Evidentemente, uma obra não poderia ser dada à nossa percepção sem aquilo que é condição de sua existência, ou ainda, a “aparição” de uma determinada forma no mundo de nossa experiência sensível não pode ocorrer sem o processo específico de produção de que depende a existência dessa forma: esta relação é o que nos permite considerar a obra um registro do processo de criação: é enquanto registro, afinal, que ela pode possuir maior ou menor valor histórico e afetivo[1]. Pois então, o elemento decisivo para esta valoração é a intensidade da experiência envolvida em sua realização – tanto pelos movimentos do corpo dx artista, no caso da pintura, quanto pela percepção reflexiva da pessoa que é retirada da condição passiva de público pelo próprio poder de suspensão que caracteriza a arte[2]. Esta intensidade, claro, absolutamente relativa, depende do que na vida pensamos já haver visto, ou do que então passamos a ver.

[1] Um dos exemplos mais emblemáticos para estas considerações é a chamada “action painting” de Jackson Pollock: as manchas de tinta remetem ao processo de produção da pintura. Antes dele, podemos considerar a orientação metafísica que retira xs pintorxs impressionistas de seus ateliês e xs leva à campo, ou, em um quadro como Olympia, de Manet, a aproximação escancarada, e ousada, para a época, entre o artista e a prostituta, ou ainda os gestos de Van Gogh sugeridos por suas pinceladas, as viagens de Gaughin e assim por diante. Estes e muitos outros exemplos são considerados no pequeno livro de Nicolas Bourriaud: Formas de vida.

[2] “o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador”. O ato criador. Marcel Duchamp, 1965. Em outra parte o artista chega a considerar que “os espectadores é que criam os quadros”. Citado em Formas de vida. Nicolas Bourriaud, p. 185.

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Uma intensidade é sempre uma irrupção no tecido mais ou menos homogêneo da vida do espírito. Podemos dizer que ela revela um direcionamento possível aos indivíduos de uma determinada época, sendo assim, de um modo ou de outro, necessária para o movimento da história. Daí que o tatear sensível que conduz o espírito ao ato criativo – a intensidade por excelência – não apenas no campo mais tradicional da arte, mas também na ciência e na filosofia cotidiana, nos pareça fundamental. É ele que poderá evidenciar que não apenas a subordinação a normas bem estabelecidas merece a nossa atenção, mas especialmente as burlas, os atentados, os crimes, ou seja, as intensidades que são tomadas como problemas no decorrer do tempo. Pois se estas coisas ocorrem, elas são indicativas de um possível que exige formas de fazer-se atual, isto é, indicativas de certa exigência do espírito; jamais meras provas de corrompimento como tendem muitas vezes a ser tomadas. Para que a intensidade que é própria à forma como se constituem estas experiências deixe de constituir problemas, a elaboração, justamente, da forma revela-se urgente, e não sua condenação ou repressão.

Sabemos que a história da arte pode ser considerada uma construção discursiva estabelecida a partir de diferenças que despontam no tempo no sentido de uma “tendência auto-crítica” levada ao extremo[1]. Tendência que, de Clement Greenberg e Joseph Kosuth, por exemplo, nos leva a considerar versões cada vez mais singulares – descolonizantes – desta história. Pois se é verdade que a história da arte reúne e articula produções que revelam fazeres e maneiras de viver que escapam do que seria possível, ou “normal”, nas diferentes épocas – na cultura, sempre a exceção, como um dia disse Godard –  então podemos adotá-la como uma espécie de instrumento de libertação. Daí o destaque que o projeto Brota confere à significação espiritual que um incontável número de artistas e pensadores atribuem à arte ao longo da história, e daí também o sentido maior da recuperação pretendida do projeto histórico de “educação estética da humanidade”: esta libertação não ocorre de cima para baixo, como em muitos casos se pensa, mas sobretudo a partir de uma ênfase sobre a potência afetiva do corpo no espaço.

É, assim, a partir da chave da libertação que o projeto Brota propõe que se considere mais amplamente o interesse em relacionar o que se considerou o fim da história da arte à discussões relacionadas, por exemplo, à descolonização e tecnoxamanismo. O mais importante, em todo caso, permanece sendo o elemento da criação.

[1] Aqui desejamos insinuar uma relação de continuidade entre os princípios que fundamentam o pensamento do mais conhecido crítico do período moderno, Clement Greenberg, que destaca em ensaios como “Pintura modernista” a tendência autocrítica que teria tido o filósofo Immanuel Kant como precursor, ao pensamento de artistas como Joseph Kosuth, que, a despeito da ruptura pretendida com a tradição formalista, reforça a tendência referida pelo crítico: “Se um artista aceita a pintura (ou escultura), ele está aceitando a tradição que vai com ela. Isso porque a palavra arte é geral e a palavra pintura é específica. A pintura é um tipo de arte. Se você faz pinturas você já está aceitando (não questionando) a natureza da arte. Está então aceitando ser a natureza da arte a tradição européia de uma dicotomia pintura-escultura”. Clement Greenberg, “Pintura Modernista”, em Clement Greenberg e o Debate Crítico. FERREIRA G.; COTRIM, C. (Org.). Joseph Kosuth, em Art after Philosophy.

Como ler/entender estes escritos?

Estes escritos são frutos de certa urgência em falar com as pessoas sobre arte; particularmente, à princípio, com as pessoas que se reconhecem como pertencentes ao “campo da arte”, como que para lembrar o que pode significar falar de artistas como xamãs[1], e para então pedir que se considere possibilidades de uso mais ou menos organizado da instituição “arte” para operar processos de transformação mais amplos entre nós.

O Projeto Brota aqui apresentado procura acentuar a aproximação, já relativamente conhecida, entre o pensamento crítico que constitui o campo da arte e a tradição do pensamento libertário. Entre as inúmeras referências que servem de algum modo à sua elaboração, cabe destacar a produção de artistas que tornam de algum modo público o processo de pesquisa envolvido no desenvolvimento de seus trabalhos. Artistas que propõem espécies de zonas de troca, como Lee Lozano, com suas Dialogue Pieces (1969), Joseph Beuys, com suas aulas abertas (início dos anos 70), ou mais recentemente, Vitor Cesar e Graziela Kunsch, com propostas como BASE Móvel e Não há nada para ver, ambas apresentadas na exposição Campo Neutral, exibida em Curitiba, no ano de 2013[2]. Campo Neutral  contou também com registros de uma outra exposição/referência intitulada “Formas de pensar”, ocorrida em 2004 em Buenos Aires.

Estes escritos podem assim ser compreendidos como parte de um primeiro esforço no sentido de estabelecer uma dessas zonas de troca/compartilhamento. Eles devem servir como instrumentos para o estabelecimento de alianças, vínculos, parcerias políticas e afetivas, sem as quais a configuração de uma rede, bem como o desenvolvimento de uma proposta de trabalho fundamentalmente coletivista, seria impensável. O projeto brota, porém, como se verá,  envolve mais do que a produção destes textos/ registros.

[1] No campo da arte, são algumas das referências para esta associação o trabalho de Joseph Beuys, Alejandro Jodorowsky e Fabiane Borges; na antropologia, Pierre Clastres e Eduardo Viveiros de Castro, além do pensamento de indígenas, como Davi Kopenawa, xamã, “porta-voz Yanomami”, e autor da Queda do Céu.

[2] São produções que se inscrevem de diferentes formas em zonas difusas entre a teoria e a prática, ou entre a reflexão filosófica e científica de caráter mais ou menos crítico, e a experimentação poética. A BASE móvel, de Vitor Cesar, por exemplo, consistia em uma plataforma de encontros e estudos que assumia diversas formas dependendo do contexto em que fosse apresentada. Não há nada para ver, de Graziela Kunsch, originalmente realizado em 2007, consistia em uma pequena biblioteca e na mediação de conversas auto-reflexivas, por assim dizer, pela artista. A exposição Campo neutral referida contou com a curadoria de Felipe Prando, e com a participação de artistas e/ou curadores como Ricardo Basbaum, Traplev, Regina Melim, Santiago García Navarro, Martin Grossmann, Jorge Menna Barreto entre outrxs.